domingo, 27 de janeiro de 2008

Quem conta um quadro... (ou pintando um conto)


Imagem: Henri Matisse, "Mesa posta (harmonia em vermelho)". Óleo sobre tela, 1908. 180x220 cm, Hernitage, São Petersburgo (Rússia).


Amélia terminava de arrumar a mesa para o café. Sua empregada havia acabado de colher as frutas, e a dona da casa fazia questão de arrumá-las pessoalmente nas bandejas que decoravam e coloriam os momentos de refeição familiar. O marido estava no banho, cuja água ela esquentara imediatamente antes de chamá-lo, para que não esfriasse em demasia. Ao longe, ela ouvia a filha mais velha praticar Stravinski no piano da sala de estar.

O dia se anunciava claro e tranquilo, um dia como muitos que já passaram. Amélia suspirou e, diferentemente da maioria das vezes, deu-se conta de que estava entediada. Seus suspiros eram geralmente seguidos de pensamentos preocupados sobre o que preparar para o almoço e para a ceia, ou com que amiga tomaria o chá da tarde, ou talvez no que estaria ocorrendo nos campos de batalha da Guerra. Mas, neste dia como outro qualquer, um súbito clarão lhe invadiu a consciência, fazendo com que interrompesse a arrumação das maçãs e laranjas.

O que faço aqui? Por quê devo arrumar estas frutas todos os dias, se elas logo apodrecem se não as comermos? Por quê tenho fazer algo que no dia seguinte terei que fazer de novo? Aonde essa repetição me levará? Amélia olhava para o nada enquanto perguntas e mais perguntas lhe vinham à cabeça, sem no entanto encontrar respostas convincentes. Mas, afinal, convencer-se de quê? Concluiu que não se sentia feliz, e isso bastava para que se obrigasse a mudar. Lembrou-se do marido e sentiu raiva por nunca ter sentido com ele prazer maior do que com qualquer pessoa. Lembrou-se de seu pai e da decisão tomada por ele e seu sogro de unir os dois filhos que sequer se conheciam. Lembrou-se de como se sentiu invadida e humilhada com o silêncio do marido, a ausência de palavras carinhosas que só sabia existirem por um passado distante, vindo à tona por breves momentos de música e alegria difusos. Pensando nisso, ouviu ao longe a música da filha, que agora cantarolava. A moça lhe dava muita alegria, com certeza, mas também lhe mostrava, cada vez mais, a presença inconfundível e indiscutível do tempo marcando-lhe o rosto, o pescoço, as mãos. Muitas vezes se viu sombria, comparando a vivacidade nos cabelos da menina e o olhar de desejo dos homens a um tempo que não lhe voltaria mais. Lembrou-se de sua mãe. Morrera cedo e, logo em seguida, morreu-lhe o marido. Amélia imaginava que ele se fora somente para que, onde quer que estivessem, continuasse a exigir a subserviência da mulher.

Um aperto lhe fez sentir o coração; vinha de um medo do futuro e uma urgência em consertar as coisas, um egoísmo nunca sentido. Gostaria de sair, de fugir. Olhou para a janela. De repente, tudo pareceu rodar e o ambiente foi dotado de um estranhamento, como se nunca tivesse ali existido. As coisas não pareciam estar em seus lugares. E, desta ausência de ordem, desta imposição caótica, submergiu em Amélia um temor ainda maior, o temor de fazer parte de tal absurdo e não pertencer a mais nada; de submeter-se irrefreavelmente ao vazio e, assim, deixar de ser.

Assustou-se. O marido lhe abraçou a cintura por trás, beijou-lhe o rosto e disse: feliz aniversário, Amélia. Não havia sorriso em seu rosto, mas talvez não o precisasse. Convidei alguns amigos nossos para o jantar, prepare algo especial. A filha chegou à mesa, abraçou a mãe carinhosamente: feliz aniversário, mamãe. Continua tão bela... e sentiu uma fresca admiração no olhar da filha.

Amélia sorriu. Tinha uma pequena felicidade em seu peito, e logo lhe veio a preocupação sobre o que servir no jantar de seu aniversário. Sem perceber, esqueceu-se completamente dos pensamentos que lhe haviam invadido minutos atrás, e voltou a se encerrar em seu doce mundinho de cores primárias.

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