domingo, 2 de setembro de 2012

Concêntrico


[Crédito da foto: Miles Aldridge, "Dreamy" para Vogue Itália, 2009. www.milesaldridge.com]

Cá me encontro, ou desencontro (de mim mesma). Muitas tarefas me aguardam. Parte delas habitualmente exige de mim um certo esforço para levar a cabo, considerando que são protocolares e exigem um raciocínio concentrado constante, no qual me vejo tolhendo minha criatividade, pois ela não cabe ali. Porém, sempre me foi prazeroso o momento do fim, mesmo dessas tarefas protocolares, aquele parágrafo final que vem junto com o pensamento “Ficou bom! Terminei!” – este geralmente acompanhado de uma expressão como “At last!”, “Graças a Deus!”, ou qualquer outra referência moderna de “Parla!” ou “Heureca!” – com tanta gente no mundo e tantas coisas já descobertas, nossos grandes passos são menores do que os de nossos antepassados.
O problema é que ultimamente mesmo estas engatinhadas me são raras. Coisas para fazer não faltam, e nos últimos tempos me flagro pegando desvios para fazer tudo, menos o que prenda demais minha concentração – parto pras atividades “mão na massa” ou, poderia dizer, “corpo em movimento”: coleta de dados do mestrado, entrevistas, trabalhos manuais, culinária (é tão terapêutico cortar legumes!), academia. Academia mesmo; nunca na história desse corpo que me pertence fiz render tanto a mensalidade salgada da academia que frequento. Em suma, tudo que eu possa fazer sem ter que deixar de lado o alvo principal dos meus pensamentos: uma nova paixão. Um enamoramento, como penso ser mais bonito dizer.
Paixões, todo mundo que teve já sabe, são como um agente infeccioso que invade nosso organismo e exige que ele trabalhe a todo vapor a fim de dar conta de suas exigências; seja por meio de uma febre literal, seja através de outras maneiras de aliviar um pouco a tensão provocada quando seu corpo está habitado por outro ser vivo além de você. Porque, assim como acontece na invasão das bactérias, fungos e outros microorganismos, quando estamos apaixonados é como se o objeto da paixão estivesse constantemente nos habitando. E é por isso que, no meu caso, esse ser alienígena que se encontra em minhas entranhas me impede de cumprir com (pelo menos algumas) obrigações profissionais.
Quero esclarecer: meu hiperego não foi dar uma volta na praia, a ponto do ego abrir as asinhas e ficar negligente com meu trabalho. É só que minha energia, minha libido no sentido junguiano, não está tão direcionada para esses propósitos. A verdade é que ela esteve neste setor de investimento – a carreira –, quase que exclusivamente, durante dois anos: neste período, nenhum corpo estranho me invadiu dessa maneira. Nesse intervalo cronológico, nenhuma paixão foi tão grande a ponto de libertar meus olhos do princípio de realidade, deixando-me nas mãos do prazer e distorcendo o que é objetivo, alargando a importância de uma música ou de um gesto, reduzindo à menor potência (existe potência zero?) a relevância das notícias do jornal. Mensalão quem? Mensalão pra mim é o tempo não-cronológico, aquele interno, quando um par de dias sem notícias é tão insuportável quanto um grande mês, um mensalão.
Há outros sintomas: sinto prazer, sinto raiva, sinto euforia. Sinto uma felicidade boa, daquele tipo que o personagem de Will Smith define tão bem em “À Procura da Felicidade”. Fico insegura e tento ignorar minhas projeções, mas no fim do dia tenho pesadelos com tudo que era pra ficar embaixo do tapete. Tento colocar tudo em seu devido lugar, devolver-lhes as proporções originais. Mas aí vem a infecção e transfigura tudo novamente.
Como já nos dizem os cientistas, a paixão (assim como os processos infecciosos) não dura muito tempo, pois não somos programados para viver nessa “inconstância constante”; não resistiríamos a tamanha bagunça, que nos tira a ordem das coisas. É aí que a paixão beira a loucura, como já nos dizem os poetas.
Não sei se eu preciso me curar para entender o mensalão, já que no fim ele mesmo tem como pano de fundo outras paixões humanas. O que sei é que escrever sobre esse enamoramento é meu remédio, me devolve, ainda que ilusoriamente, a consciência e o controle. E, até a outra dose prescrita, volto para minhas tarefas.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

De que é feita a beleza




Há quem diga que mulheres bonitas possuem uma maldição, que é a própria beleza. E esta, difícil de explicar, poderia ao menos ser compreendida dentro de um quê de mistério, sensualidade e volúpia - tudo isso "sin perder la ternura", que para o homem-filho é essencial. Soma-se também um componente essencial, que é a fagulha de vulnerabilidade, nem de mais, nem de menos, às vezes fisgada apenas num breve olhar.


Também se pode pensar que, para ser bonita, é preciso um mínimo de auto-conhecimento (pois só quem se conhece minimamente sabe o ângulo, o lugar, o músculo a ser contraído naquele exato momento, para ser bonita. Sim, beleza não é apenas um estado de graça, é também um estado de esforço consciente). Mas será possível ser igualmente bela sem nada saber de si? Talvez na posição mais extrema, que é aquela em se está tomada pela loucura. Nesse caso, a beleza subverte os requisitos triviais e assume outros, inexplicáveis pela lógica.



Acabei de assistir ao "Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios", adaptação de Beto Brant da obra literária de Marçal Aquino. Livro, aliás, que para mim tem um valor especial, dado que há (muitos) anos eu penso em ler, mas que, de fato, sempre ficou na via do pensamento. Talvez nao fosse a hora. No filme, Camila Pitanga é Lavínia, personagem que dá o tom da trama e, obviamente, dona dos "lindos lábios" do título. Esposa de um pastor numa comunidade predominantemente indígena no norte do país, Lavínia traz consigo o passado carregado de dores, experiências dúbias, decepções. Nada tão diferente do que acontece com outras mulheres belas na vida real; o risco de serem alvos de "farejadores de vulnerabilidade" é potencialmente semelhante ao risco de serem alvos de um amor intenso. E, mais complicado ainda, ambas as condições podem andar de mãos dadas.



No caso da personagem central do "Eu receberia...", a vulnerabilidade é ainda maior, posto que as experiências anteriores, de infância, fizeram marcas férreas na construção dos significados daquilo que é essencialmente humano, como a identidade própria e a sexualidade. Lavínia possui uma fileira de tijolos de gesso nas paredes de seu eu; um abalo sísmico, uma tempestade, até a iminência de um choque pode arruinar uma estrutura sustentada até então pela sorte.



Até o final do filme, não sabemos em que caixinhas Lavínia arquivava seus relacionamentos. E, por conseguinte, não sabemos quais serão suas reações frente às condições que ela mesma cria, ou que lhe são impostas (ou propostas?), pelo contexto em que vive. Reside aí o mistério, aquele necessário à beleza que comentamos no início do texto. A sensualidade e a volúpia, outros quesitos mencionados, são os maiores demônios da personagem, aqueles que ela não domina até o final, a não ser às custas de si mesma. E a ternura? A ternura é provavelmente o que não se perdeu e o que a manteve viva, apesar das baixas decorrentes de sua guerra interior.

sábado, 21 de abril de 2012

Ilusão


Que dureza aguentar
tamanha ilusão
Pegar-se a sonhar
bem no furacão.

Quase um delírio
no meio da rua
Semi-martírio
um uivo pra lua.

A mente repete
perseveração
Gruda chiclete
no coração.

Fantasia mor
Realidade dói
E esse tom menor
no peito corrói.

Paixão é fuga
pique-esconde da dor
orelha da pulga
carrapato do amor.

Esse jogo eu sei
até a pág. 2
Mas não temerei
o que virá depois.