quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O mito da (bat)caverna




É um pouco estranho realizar o sonho de tirar novas férias em um intervalo de 3 meses, mas nada como a adaptação!
Hoje meu dia de férias incluiu uma boa caminhada ao sol, sorvete Hägen-Dazs e ajudar minha prima Luiza em um trabalho de escola. Matéria: Filosofia. Tema: analisar a alegoria da caverna platônica com uma obra cultural. Obra escolhida pela Luiza: The Dark Knight Rises. Abaixo, o que virou essa história...


"There is a prison in a more ancient part of the world. A pit where men are thrown to suffer and die. But sometimes a man rises from the darkness. Sometimes the pit sends something back."
(Há uma prisão numa parte mais antiga do mundo. Um poço onde os homens são jogados para sofrer e morrer. Mas as vezes um homem emerge das trevas. As vezes, o poço manda algo de volta.)

Em "Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge", podemos associar a alegoria de Platão em níveis, do individual ao coletivo, constatando que a realidade é objetiva e subjetiva - ou seja, é da realidade apresentada por um outro (ou por um acontecimento) que podemos encarar e compreender a nossa própria realidade, moldada pelo que somos até aquele ponto. 

Em nível individual, é óbvio pensar na transformação pela qual a personagem Bruce Wayne/ Batman passa ao longo da trilogia. 

O filme começa com Wayne voluntariamente retirado da sociedade, após perder a esposa e assumir falsamente a culpa pela morte de Harvey Dent. Ficamos sabendo que, num passado distante, ele integrava um grupo chamado Liga das Sombras, cujo objetivo era treinar e capacitar as pessoas nas artes de luta e estratégia de combate, com o propósito final de "limpar Gotham City da escória". Quando Wayne descobre que isso envolve eliminar os cidadãos da cidade a um preço muito caro, ele decide abandonar o grupo (não sem antes incendiar o local de treinamento). O problema é que há um mercenário chamado Bane, também treinado pela Liga, disposto a continuar com os objetivos de destruir a Gotham cheia de vícios.

Vários personagens aparecem para Wayne como a "realidade" e tentam-no fazer encará-la. O policial Robin John Blake lhe conta que o orfanato não é financiado pelo grupo financeiro de sua família há dois anos, o detetive Gordon pede que ele ajude a cidade a livrar do mal que eles mesmo causaram. O ápice ocorre quando Alfred lhe pede que fique fora da luta contra Bane e tente viver sua vida, pois a esposa falecida que ele tanto honrava em luto e solidão estava pensando em deixá-lo antes de morrer; ao invés de convencê-lo, isso acaba aumentando o desejo de Wayne salvar a cidade novamente.

Além dele, podemos pensar outras personagens que "saem da caverna", como a Mulher-Gato, que percebe que sua realidade era maior do que fazer pequenos golpes e julgar quase como "direito" roubar os mais ricos. Podemos também pensar que o núcleo dos vilões da história é o único que não passa por uma transformação, não sai de sua "caverna": e é por isso que ficam presos em suas ideias, jogando com as palavras, sombrias.

No nível coletivo, é possível pensar que a própria sociedade de Gotham passa por uma transformação (ou pelo menos começa a se transformar). Afinal, como o vilão Bane comenta, "Eu sou um mal necessário"; não dá para dizer que os cidadãos são totalmente inocentes (como Ms. Tate comenta, "Inocente é uma palavra muito forte para falar de Gotham"). Não podemos negar que a violência e a destruição que são defendidas pelos vilões do filme podem, de fato, ser consequência do modo de viver daquela sociedade, ainda que não seja a justificativa para uma destruição. De qualquer maneira, vemos alguns fragmentos de revolta e de tentativa de lutar contra aqueles que tentam dominar e acabar com toda a cidade, e também vemos alguns cidadãos que fecham as portas de casa e não querem tentar fazer nada. A mudança pode ser através da luta, ou através de uma reflexão que venha apenas com o tempo.

E é aí que a análise individual se encontra com a análise do coletivo: podemos pensar que Bruce Wayne "mata" o Batman (Cavaleiro das Trevas, ou seja, da escuridão, das sombras) porque ele já não pode mais viver nas sombras. Ele viu que a realidade é maior, e talvez ele tenha percebido que Gotham precisa viver com as próprias pernas. E ele também.

O que devemos saber é que, uma vez que saímos da caverna, não há como voltar para ela. Pelo menos não voltamos como éramos antes, e sim transformados. Nosso olhar é outro, pois já vimos a realidade como ela é. E essa realidade, mesmo ela, não é imutável; ela se amplia conforme podemos conhecê-la e transformá-la. E, para sair da caverna, não podemos ser como as pessoas que se limitavam a rir ou não acreditar no homem do mito, que deixou de ver as sombras. Temos que abandonar os medos e ter a coragem de olhar por nós mesmos.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

O pedaço da vida que são as férias

(menino ouvindo áudio sobre obra de Miró, no Museum of Modern Arts, NYC, em ago/13)

Férias são sempre boas, mas não são boas sempre - para uns, ela traz um certo sentimento de vazio pelo ócio excessivo, para outros traz uns quilos a mais. Já ouvi gente que caiu na cama, doente, no primeiro dia sem ter que bater o ponto (o que não é à toa nem coincidência, na maioria das vezes, vamos combinar!). E, claro, tem férias que só são ruins no momento em que acabam.

Sou daquelas pessoas que fazem de tudo para aproveitar bem as férias, seja viajando (o que me dá uma certa preguiça de resolver sozinha, mas para isso conto com uma família enorme e em especial uma prima-irmã sempre disposta a viajar e resolver todos os procedimentos burocráticos com mais facilidade do que preparar comida congelada - no caso dela, quero dizer isso literalmente!), seja aproveitando os dias em casa, fora da loucura do trabalho (o que, digamos, no meu caso também é literal, sem conotações pejorativas do termo "loucura"). 

Este ano, passei metade das férias em viagem. Chego, assim, a uma outra modalidade de "cons" deste período de descanso: o o stress natural das viagens de férias. Nem que esse stress seja vivido naturalmente e com muito bom humor, é inegável que ele existe. Não é só pelo hotel que se mostrou uma decepção, ou pela simpatia de guerra dos taxistas, ou pela discordâncias entre as partes sobre qual programa fazer; há o stress do corpo pelas mudanças na rotina, o fuso horário, o jet lag.

Mas "sair de cena" é importante. Quando há a possibilidade de viajar, é melhor ainda, pois você poderá trazer uma nova experiência cultural -  e experiência nunca é desperdício. Se não dá para viajar, também pode ser proveitoso imersar-se em uma experiência particular que seja de seu agrado, como arriscar-se a uma nova modalidade de lazer, o que pode ser em níveis distintos de novidade. Por exemplo, gosta de filmes e quer assistir a filmes novos. Que tal conhecer um gênero que não costuma ser sua primeira escolha - um documentário, ou um filme de terror? Em outro nível de novidade, vale até rever um filme bacana e prestar atenção a algo que nunca foi seu foco de atenção, como os efeitos sonoros, ou o figurino.

Férias não representam um hiato da vida, e sim do aspecto "produtivo" da vida, seja do trabalho, seja dos estudos. Esperar as férias não é esperar que as regras da vida, que sempre impera, às vezes frustra e nunca é perfeita, sejam revogadas neste intervalo. Assim, não será necessariamente um mar de rosas, a não ser que suas férias sejam pequenas o suficiente para caber um mar de rosas. 

Mas se a alma for maior ou se assim o quiser, vale a pena ir além do convencional - mergulhe!

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Samba do só



O que foi essa atitude vil?
Eu nem sei o que dizer, viu
Só posso sentir decepção
Você decepou meu coração

Se não pode dizer por quê
Garanta apenas que isso
Nunca mais vai acontecer, porque
Minha certeza sempre foi na bondade
Quero crer num amor de verdade
E o que tenho no peito dá pra dar e vender

O que foi essa atitude vil?
Eu nem sei o que dizer, viu
Só posso sentir decepção
Você decepou meu coração

Sei que devo desejar sorte
Que sua vida corra como você quer
Mas sei que nela já não cabe uma mulher
Não cabe mais ninguém além de ti

Eu sei
Que o perdão é uma virtude, como queira
Mas fico triste quando fico de bobeira
Sozinha a minha mágoa há de sumir

O que foi essa atitude vil?
Eu nem sei o que dizer, viu
Só posso sentir decepção
Você decepou meu coração

sábado, 4 de maio de 2013

C.

[obra de Berthe Morisot, não encontrei nome, data. Ela é uma de minhas pintoras preferidas desde que vi suas obras pessoalmente]

Pra ter uma experiência boa, não precisa sair para o melhor lugar da cidade, o point indicado pelo guia dos jornais. Para viver, a abertura de si exigida é mínima.
Agora há pouco, por volta das onze da noite, desci para a academia do flat. Crente de que estaria sozinha, dado o horário, assustei-me com uma mulher, também descendente de japoneses, semelhante também na altura e no comprimento dos cabelos, pretos. Ela chegou logo em seguida e perguntou se poderia ligar a tv. Puxei algum assunto, enquanto escolhia a música do fone e respondia a mensagens no whatsapp (não consigo fazer uma coisa de cada vez, quase nunca). 
Não, não moro aqui, estou hospedada. Você estuda? Ah, que bom... Mas é concurso? Pergunto porque minha filha também faz Psicologia. Ela gosta da área de Saúde Mental, é a sua? Ah... Poxa, que bom. E sua mãe se preocupa com você, né - acabou de ligar... Área difícil a de vocês, se bem que pra médico também está difícil, sou médica... Gineco e Oncogineco, também não é fácil. Só no particular não dá. 
Sim, ela é a do meio, está no último ano. Tem a mais velha e tenho mais um. Cresceram sem o pai, mas falo que não é porque meu casamento não deu certo que eles... Tem que tentar, né? Você, então, uma menina bonita! Precisa insistir, não pode deixar pra lá. Até porque depois vêm os filhos, e aí você tem uma razão de viver - veja sua mãe, estava lá pensando em você agora... 
Depois que separa, vem os outros homens, mas muitos pedem pra escolher, ou os filhos, ou eu. Aí eu digo: adivinha?? Ah, sim, eu tenho um amor agora. Mas é difícil eles assumirem os filhos dos outros. Eu falo que, se ele não está preso a mim, também não estou a ele, e eles têm medo, é bom. Tenho esteira em casa, só eu uso. Agora há pouco comi uma massa no restaurante com minha amiga... 
Mas você não pode desistir, tem que tentar. Você conhece o fulano? Ele mora aqui e é médico. São gêmeos e, olha!, estão solteiros... Um é médico, o outro, advogado. Fica esperta. Bom, acho que não aguento mais.  Continue no caminho certo, seus pais devem ter muito orgulho. Foi um prazer conhecer você.

...foi meu!

segunda-feira, 29 de abril de 2013

A separação da dor

[The Sleeping Girl. Tamara de Lempicka. Óleo sobre tela, 1930. Stephen Myers -Worth Avenue fine Arts, EUA]

Quantas vezes nos acontece de passar o dia com uma dor de cabeça forte, intensa, latejante, para enfim percebermos que, na verdade, a dor é em um dente, lá num cantinho da boca, e nada mais que isso? É o fenômeno da generalização da dor. Há situações em que é impossível para nosso cérebro detectar o foco exato de dor, seja ela por um corte profundo em uma situação de intenso estresse, em que a necessidade de fugir dali é adaptativa e, portanto, é melhor que não se tenha consciência da dor. Ou, simplesmente, porque a região afetada possui terminações nervosas que contribuem para esta dificuldade (como a dor de dente, por exemplo).

Emocionalmente falando, há outras maneiras de sentir dor de maneira generalizada. Como nas grandes dores do corpo, aqui não entra o tempo lógico; vive-se a dor sem olhar para as horas e o calendário. A vivência da dor pode ser pulsante, talvez repentina, daquelas que "retorcem", pode ficar crônica. Por outro lado, as dores desta natureza não passam com analgesia - às vezes é preciso, sim, anestesiá-las com medicação; porém, a resolução  envolve algo mais similar à fisioterapia: é aos poucos e no sucessivo contato com a própria dor que deixamos de senti-la.

Mais do que superá-la, é através do entendimento da dor (e isso envolve o contato com ela - nem que seja um contato "cirúrgico", cuidadoso, acompanhado, em zona segura) que podemos identificar de onde ela vem. Pois, da mesma maneira que a dor de dente, o espraiamento de uma dor emocional prejudica o discernimento do ponto exato da dor. Sentimos apenas a dor, e que dor!, precisa mais do que isso?? 

Sim. Para que não culpemos vítimas, não sejamos injustos com as outras pessoas e com nossos sentimentos (entrando assim na cadeia multiplicativa da dor), precisamos de uma leve resignação. Aceitar que a dor, sim, está lá; e nos concentrarmos para extraí-la sem maiores efeitos colaterais, tendo a grata surpresa de conferir seu real (e menor) tamanho.

Pílula de Pensamento 6



[Storyboard de Akira Kurosawa]

Uploading ditos populares:

"Quem se esmera às vezes cansa."

sexta-feira, 1 de março de 2013

A vida e a arte

Deve ter sido o nome mais óbvio das minhas postagens. Mas o que precisa ser destacado aqui não é o meu título, nem meu texto. É esse vídeo (o primeiro que coloco aqui), e que me tocou muito. Porque muito falamos sobre o adeus, a despedida, a perda - às vezes, nos atrevemos a falar do luto. Porém, raramente falamos sobre a vida além da separação. E, sim, ela existe. Não somos todos poetas ou artistas, nem podemos nos dar ao luxo de um ritual de adeus que envolva a Muralha da China. Mas, ainda assim, a vida pode nos brindar com surpresas. Para chegar lá, há um duro caminho a percorrer, e, durante pelo menos uma parte, devemos fazê-lo sós.

“Nos anos 70, Marina Abramovic viveu intensa história de amor com Ulay. Durante 5 anos viveram num furgão realizando performances. Quando sentiram que a relação já não valia, decidiram percorrer a Grande Muralha da China, dar um último grande abraço e nunca mais se ver. 23 anos depois o MoMa de NY dedicou retrospectiva a sua obra. Nela Marina compartilhava 1 minuto de silêncio com cada estranho que sentasse a sua frente. Ulay chegou sem ela saber, e foi assim.” Maeve Jinkings (Traduzido por Rodrigo Robleño)


domingo, 24 de fevereiro de 2013

Oscar 2013: O lado bom e/ou negro do humor (Django Livre e O Lado bom da Vida)



Sim, esta noite é o Oscar, e eu fatalmente não consegui assistir a todos os concorrentes antes da cerimônia para poder dar meus palpites com conhecimento de causa. Claro que meu otimismo (ou hipomania, emprestando esse termo psiquiátrico) não era tão grande (mania) a ponto de achar que veria todos os candidatos de todas as categorias (até porque muitos não estrearam no Brasil). Mas pelo menos entre os possíveis vencedores de Melhor Filme, eu gostaria. Mas não.

De qualquer forma, aqui vão os dois últimos candidatos que consegui ver em tempo: "Django Livre", de Quentin Tarantino, e "O Lado Bom da Vida", de David O. Russel. Além de eu ter gostado muito de ambos e, entre os que vi, torcer para um deles ganhar (mesmo apostando em "Argo" ou "Lincoln" pela lógica da coisa), são filmes que chamam a atenção porque um forte motivo em comum para que ambos funcionem muito bem é aquilo que denominamos "química" entre os atores.

Sim, porque além de todos os critérios primeiramente técnicos, um filme também funciona muitas vezes por aquela variável independente, aquela faísca que se forma não pelo friccionar mecânico de dois pauzinhos ou por uma boa escolha angular, e sim por algo que é observável apenas a partir do momento em que passa a existir -  não se pode prever, antecipar ou controlar.

À parte de ótimos roteiros, ótimas construções de diálogos em ambos os casos, Lawrence-Cooper e Foxx-Waltz funcionam (nesse último caso, até no nome a sintonia é praticamente uma mistura sonora). Apesar de toda a tristeza que é intrínseca aos temas (a escravidão, o transtorno mental, a separação forçada de um casal, a não-aceitação de uma separação, a violência, o preconceito, e assim podemos ir desencadeando outros subtemas), apesar de podermos sentir tudo isso nesses filmes, ainda assim somos capazes também de viver um sentimento sublime, que ajuda a amenizar o que dói - o humor. Para a psicanálise, por exemplo, um dos mecanismos de defesa mais elaborados, superior no sentido de que podemos utilizá-lo adequadamente conforme somos capazes. Às vezes voluntário e muitas vezes involuntário, o humor nos ajuda a trazer luzes coloridas aos nossos lados sombrios.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Pílula de Pensamento 5


[London Eye, clicada pela minha prima Carol]

"Tudo se aproveita
quando a alma não é estreita."

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Oscar 2013: As Aventuras de Pi (ou "De onde vem a calma", Los Hermanos)




Um desses filmes de discussão inesgotável, podendo ser explorado sob diversos ângulos, “As Aventuras de Pi”, para mim, já recebe menções sobre a tradução do nome, que poderia ter seguido fiel ao original, sem grandes problemas. “Life of Pi” se aproxima mais ao que, a partir do ângulo que escolhi, de fato se referem as situações/ “aventuras” que o personagem principal – Pi, cuja explicação do nome verdadeiro é um dos momentos divertidos na história – tem de enfrentar.

Explico. Há aqui os componentes necessários para a saga de um herói: perdas, sacrifícios, luta e a redenção. Porém, o filme não fala de um herói – Pi não tem nada a mais do que qualquer um de nós; nem superpoderes, nem inteligência extraordinária, a não ser uma curiosidade algo descomunal por diferentes religiões. Na verdade, o que ele quer entender é como podemos acessar Deus, essa força maior que as religiões tentam explicar por meio de suas histórias. Apenas isso. E não há nada mais anti-herói e mais humano.

E o que seria Richard Parker? Bem, para minha prima caçula, Luiza, o tigre seria “uma parte dele mesmo” – a agressividade, a força, o que é instintual. Ou poderia também representar o equilíbrio necessário em nossas vidas: sem o tigre lhe ameaçando e ao mesmo tempo lhe ocupando o tempo e a mente, Pi sabiamente percebe que não sobreviveria aos 227 dias no meio do mar. Richard Parker poderia, portanto, estar dentro ou fora de Pi. Poderia ser seu lado sombrio e regido pela ódio, ou poderia ser aquele trabalho difícil, aquele recorde a ser superado, aquele tratamento de fertilização.

Ao longo do filme, me pegava pensando que jamais seria uma sobrevivente de um naufrágio. Sério. Não teria a paciência e tranquilidade dosadas com atenção e energia necessários. Jamais, jamais (esse segundo em sotaque francês pra dar mais ênfase) conseguiria. Depois, constatei que “A vida de Pi” (tradução livre, como se dizem) é uma linda metáfora sobre a vida, no melhor estilo oriental que conhecemos. E, sendo assim, posso muito bem ser capaz de enfrentar meus próprios tigres – pois o que realmente importa, o que realmente somos, é independente do percurso que escolhemos, de modo que a nós cabe definir o andamento da própria história.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Oscar 2013: Os Miseráveis



There was a time when men were kind
When their voices were soft
And their words inviting.
There was a time when love was blind
And the world was a song
And the song was exciting.
There was a time ... then it all went wrong
(...)
But the tigers come at night,
With their voices soft as thunder,
As they tear your hope apart
As they turn your dreams to shame

["I dreamed a dream", música de Claude Michel-Schonberg, 
letra em inglês de Herbert Kretzmer]


Para mim, a música-chave de "Os Miseráveis" (mais do que emocionante na interpretação de Anne Hathaway) é como um prelúdio que narra o que acontecerá ao longo do filme. Mais ainda, é uma sinalização do que está por detrás de um enorme sentimento de estranheza que permeou minha sessão, e a qual pude começar a decifrar somente após algum tempo. 

A estranheza que me saltava aos olhos, que me fazia questionar - afinal - que pessoas eram aquelas e por quê elas eram tão diferentes de mim, de nós, consistia na coragem (ali exibida por todos os personagens) em assumir e lutar por aquilo em que se acreditava: um novo curso de vida, uma justiça a ser respeitada, uma outra organização social e política, o nascer dum amor.



Em que parte da História essa coragem se perdeu?



Tenho a impressão de que o próprio filme traz uma ideia. Quando os jovens revolucionários franceses se veem sem o apoio da população e morrem, convictos do ideal de que após eles surjam outros - justificando assim suas mortes - talvez esses outros jamais tenham aberto suas casas, encerrados no que sempre esteve ali, atrás daquelas portas. 

O medo não é o oposto da coragem, e sim a inércia. Talvez, em algum momento ("then it all went wrong"), os riscos tenham sido minimizados. As escolhas passaram a valer menos. À morte coube menos da metade da glória que lhe era concebida e, assim, não havia mais o que bradar, ameaçando aquela que é inevitável.


As revoluções se desenvolvem em silêncio. Porém, quando a hora é indevida e o ato se silencia de modo prematuro, elas são consumidas pela própria energia. Implodem.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Ele de novo (o amor)



[arte de Christiane Vleugels]

Só porque o coração é o primeiro órgão que indica ao médico que estamos vivos - que existimos - na barriga da mãe, não quer dizer que seja fácil lidar com ele. Na verdade, muitas vezes é difícil entender o que ele quer dizer quando acelera ao encontrarmos aquela pessoa, e ainda mais duro decifrar aquele aperto que ele dá quando dizemos adeus.


Como o entendimento "consciente" só se dá quando adquirimos o mínimo de linguagem necessário para traduzir sensações em palavras, imagino como foi a primeira vez que sentimos um prazer tamanho que balançou nosso coração. Provavelmente foi lá atrás, num colo do pai ou abraçando a mãe, e na ocasião só pudemos babar ou, até, molhar as fraldinhas de emoção.

Mas, se até a vida adulta, identificar e falar dos sentimentos é higher level para qualquer ser humano, penso cá com meus botões sobre a diferença de pesos e medidas entre homens e mulheres nesse quesito.

Para nós, de certo modo é mais fácil: aquela velha história de que à menina é autorizado chorar, ser "manteiga derretida" (com esse mundo light, nem isso podemos ser, no máximo nos é autorizado ser uma Becel derretida). O homem, esse não chora. Bom, se não chora, faz o quê, então?

Duvido que muitas pessoas indagaram a continuação desse dito popular tão plutocrático. Faz o quê, se não chora mas está triste, se quer um colo, se a dor no peito está insuportável, ainda mais no calar da noite?

Recalca. Ignora. Nega. Verbos que, por si só, deixam claro o crime que é dizer que "homem não chora". Então, a saída é adoecer. É errar e só conseguir perceber que se perdeu depois que a ponte atrás já se desfez.

E, por essa enorme falha no cultivo dos sentimentos masculinos, eles tampouco sabem como agir frente a algo que lhes provoque um mínimo de dor. É mais fácil sair de cena, partir, ir embora: essa é a escolha-padrão desde os tempos das cavernas.
E aí... aí vem a Becel.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Do Amor (sempre ele)


Você pode ser linda; ter um cabelo perfumado; bom hálito. Você pode ser inteligente, falar de arte e de futebol usando um mesmo argumento essencial. Você pode ser engraçada, rir de si mesma, permitir que uma briguinha vire motivo de piada. Você pode ser companheira, lembrar-se de perguntar como foi o trabalho, vibrar com uma conquista, topar um programa de índio sabendo que pode ser divertido. Você pode ter tantas qualidades, mas sempre haverá alguém com qualidades parecidas, ou relativamente melhores. No fim, não é o conjunto de suas qualidades que determinará o sucesso ou o fracasso do seu relacionamento. Este, como já sabemos, é feito de dois; suas qualidades e seus defeitos são apenas uma pequena parcela do todo dinâmico e imprevisível que é uma relação. O que é qualidade pra um, pode não ser pra outro. Sua beleza pode deixá-lo inseguro. Seu companheirismo pode parecer uma invasão de privacidade. Sua insegurança pode ser a engrenagem que o faz se sentir forte e poderoso. Não, você não fez nada de errado, você não faltou com nada, você não excedeu em nada; e ao mesmo tempo sim, você fez tudo isso, e mais um pouco. Depende do ponto de vista, e ele nunca é monoangular quando o que se está em jogo é uma trama que envolve (pelo menos) dois seres com toda essa bagagem nas costas.