domingo, 9 de janeiro de 2011

“Dúvida” e “O castelo nos Pirineus”


Estou em meus últimos dias de férias e, tirando tempo para resolver alguns projetos, optei por recrutar a companhia de filmes que, em algum momento, estiveram na minha ”to watch list” e acabaram se perdendo (por falar em listas, em breve postarei alguma para celebrar este período de descanso). Aluguei três filmes ontem, incluindo “Dúvida”, de John Patrick Shanley, com o elenco de peso em torno de Meryl Streep, Philip Seymour Hoffman, Amy Adams e Viola Davis (todos concorreram ao Oscar naquele ano), e que acabei de assistir.

Com certeza, falar do filme em si seria minimamente redundante: além de não ser novo, foi muito comentado. E realmente há o que se comentar: além dos atores incríveis, as tomadas dos domínios imponentes e simétricos de uma escola católica impõem o tom da autoridade, da rigidez e da ordem à qual as personagens – e seus destinos - são submetidas. Sem contar a extrema pertinência ao tratar de questões como intolerância, moralismo, dogma, incluindo até mesmo um discurso que justifique ações questionáveis e que prejudicam o outro (a personagem de Meryl Streep diz, em um certo momento: “Na luta contra o mal, nos afastamos um passo de Deus”, remetendo a discursos do ex-presidente americano). Isso tudo em um enredo complexo, em que novos fatos e novas defesas são acrescidos e mudam nossas opiniões a cada cena.

Porém, uma frase que me fez pensar em um dia como hoje foi a do personagem de Hoffman, Padre Flynn, no primeiro sermão do filme. Falando sobre nossas incertezas, humanos que somos, ele nos tranqüiliza com a frase: ”Doubt can be a bond as powerful and sustaining as certainty” (algo como “A dúvida pode ser tão poderosa e sustentadora quanto a certeza”).

Refletindo agora, esta frase tem conexão com um dos livros que li, orgulhosamente, nestas duas semanas no litoral: “O castelo nos Pirineus”, de Jostein Gaarder (sim, o autor de “O mundo de Sofia”, mas que merece crédito por suas demais obras também). De semelhança com o filme em questão, há que este livro gira em torno de duas personagens que discordam entre si, porém neste caso eles são ex-namorados que se reencontram após 30 anos e passam a trocar e-mails, debatendo suas divergências filosóficas (ela, com fé na transcendência espiritual; ele, no big bang) e, também, buscam ressignificar o evento marcante que os separou quando jovens. Um livro delicado, que em algumas páginas peca pelo excesso de informação sobre física quântica (há algum tempo, Gaarder passou a flertar com as ciências exatas quando não se contentou com o lado da filosofia), mas que consegue construir dois personagens-narradores tão diferentes, refletidos em seus discursos, e ao mesmo tempo tão cúmplices um do outro, dado o passado em comum. A segunda metade do livro, quando os mistérios são revelados, é lida em um fôlego, e o final é... bem, leiam o livro.

“A dúvida pode ser tão poderosa e sustentadora quanto a certeza”. Ora, na religião e em nossas crenças filosóficas primordiais (Quem sou eu? Para onde vamos? O que existe no Universo?), não há como se provar o que se acredita. Este não-saber remete o tempo todo à nossa impotência frente ao que é maior do que nós, e esse sentimento pode tanto nos fazer resignar frente ao que nos parece aceitável (ou os é dado como tal) e dá alento, quanto nos impulsionar para buscar superar e exterminar estas pulgas atrás da orelha. (Aliás, devo mencionar uma lembrança irresistível que acabei de ter: no livro “O dia do curinga”, Gaarder nos compara a pulgas atrás da orelha de um cachorro, que não sabem o que está além do que conseguimos ver – na verdade, não lembro se realmente era pulga e se era um cachorro, talvez fosse um coelho, mas a ideia era essa) Assim, as dúvidas acabam por se tornar nosso alicerce, ainda que eternamente corroído e inacabado; são elas que nos constroem e nos transformam, seja na religião, seja na ciência.

Mas não são apenas nestes questionamentos gerais, existenciais, coletivos, na falta de uma palavra melhor, em que a frase do Padre Flynn fez sentido para mim: na verdade, o que primeiro me veio à cabeça trata de um aspecto mais subjetivo, pessoal, íntimo: o desejo de cada um. “A dúvida pode ser tão poderosa e sustentadora quanto a certeza” – enquanto não somos preenchidos com o “monstro bege” do comodismo, movemos nossos braços, o corpo inteiro e até a alma em busca de uma segurança idealizada, que acreditamos ser o que queremos. Sim, um quê de segurança é bom; ouvir “sua saúde é de ferro”, “eu te amo” e “você fez um ótimo trabalho” podem deixar a pele melhor, cadenciar o ritmo de nossos pés, plantar um sorriso multiplicador em nosso rosto. Entretanto, é a sabedoria de que nenhuma destas certezas é eterna que nos mantém sempre em movimento.

Assim, parece que o que nos motiva não é necessariamente a garantia de algo eterno: nós também buscamos a dúvida, gostamos do que ela desperta, cutuca. Ela é a coceira que nos perturba, mas também dá prazer. E, diferentemente da certeza, seu departamento abarca as fantasias, as esperanças, e passa longe do desapontamento, da desilusão, do ressentimento – palavras tão parecidas que tentam exprimir o que a ausência do “Será...?” pode transmitir.

O quanto podemos viver em dúvida? Depende da braveza da pulga... e do grau de tolerância do cão.

Um comentário:

Maria José Baraldi disse...

Ainda não li tudo, mas minha ansiedade e meu alzheimer não me permitem continuar a leitura sem antes fazer um comentário.Você diz que não falará do filme porque muito já foi comentado, saiba que eu nunca escolho um filme pelo que li sobre ele, nunca leio nada antes de ver um filme para não me deixar influenciar por alguém que não conheço o gosto, muito menos o que lhe levou a escrever o que escreveu. Em geral são comentários comerciais, com o objetivo de atender a um público específico que não deseja e nem sabe pensar. Você já deve ter reparado que os comentários são sempre superficiais e você daria outro foco se escrevesse sobre o filme, não é? Continuando a leitura de seu texto, vejo que tenho razão, vc dá um foco diferente, vai analisando e comparando textos diferente (grande menina!!!!!)
Quanto ao seu texto, não tenho o que comentar além de dizer que é maravilho, minha menina que cresceu e é um solo fértil em valores, ideias, crítica. Estou orgulhosissima de você.
O tema ciência religião parece meio constante em você, em mim também, principalmente nos últimos dias. Precisamos nos sentar e completar nossas ideias.
beijos muito grandes. MJ